terça-feira, 5 de julho de 2011

Brasília e a experiência da modernidade

BRASÍLIA E A EXPERIÊNCIA DA MODERNIDADE



[...] Com a Proclamação da República, em 1889, o ideal de interiorização da Capital do Brasil transformou-se num imperativo constitucional, consubstanciando tudo quanto durante o período colonial e ao longo do Brasil Império se constituirá sonho nativista, conjecturas e propostas de alguns brasileiros de maior visão e espírito público. [...] O primeiro Decreto revolucionário, e de no 1, com data de 15 de novembro de 1889, já definiu e constituiu a cidade do Rio de Janeiro ‘provisoriamente, sede do Poder Federal’ (VASCONCELOS, 1978: 105).

A mudança da capital, como citado acima, está prevista desde o primeiro decreto republicano, que conferia ao Rio de Janeiro – provisoriamente, apenas – a condição de sede do poder federal. A primeira Constituição republicana, promulgada em 1891, declara que “fica pertencendo à União, no Planalto Central da República, uma zona de 14.400 quilômetros quadrados, que será oportunamente demarcada para nela estabelecer-se a futura Capital Federal”[1] (REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL, 1891). Produzir uma nova ordem no país era mister para a efetividade do nascente regime, que tinha, no Rio de Janeiro, o simbolismo da Corte e do Império.

Este caiu em decorrência da Abolição da escravatura em 1888, a qual causou o rompimento das elites agrárias com a Monarquia. Pouco mais de um ano depois do fim da escravidão, um golpe militar proclamou a República. Assim, para assegurar a construção de um novo país, moderno e republicano, foi estabelecida a Missão Cruls, em 1892, a qual delimitou, no interior brasileiro, um quadrilátero que correspondia ao encontro de nascentes das três principais bacias hidrográficas brasileiras, cujo sítio, de acordo com Varnhagen, era propício à “missão que a Providência parece ter-lhe reservado, fazendo a um tempo dela partir águas para os maiores rios do Brasil e da América do Sul” (MAGNOLI, 1997: 284).

Assim, Brasília, centro da Ilha-Brasil, “simbolizava a harmonia, finalmente encontrada, entre os desígnios da Providência inscritos na natureza e o projeto de edificar uma civilização adaptada aos trópicos” (ibid.: 287). Não havia, contudo, condições para a construção da nova capital, e, embora a transferência fosse prevista em cartas constitucionais posteriores, somente foi possível concretizá-la no governo de Juscelino Kubitschek. Segundo Marly da Silva Motta (2001: 68),

[...] a disposição de Juscelino Kubitschek de interiorizar a capital, teria derivado, em parte, do fato de o Rio de Janeiro ter sido o principal cenário da ampla mobilização popular durante o último governo Vargas, bem como da conspiração golpista que se seguira, e que quase impedira sua posse. Portanto, tal como Campos Sales, Kubitschek se sentira vulnerável diante da ‘agitada’ e ‘ameaçadora’ capital. Como diz Oswaldo Orico, um dos mais próximos auxiliares do presidente, ‘Brasília seria uma libertação, para os governantes, das lutas sociais no Rio de Janeiro. A antiga ebulição sociopolítica carioca perturbava a administração do Estado’.



O Rio de Janeiro, pois, não serviria mais aos desígnios de capital da República:

A idéia da construção de Brasília se sustentou, assim, na alegada incapacidade de o Rio de Janeiro continuar a exercer a função de ‘cabeça’ de um país que precisava se modernizar e se integrar ao mundo desenvolvido com segurança e tranqüilidade. Tal como no início da República, a cidade se defrontava com um processo de deslegitimação do papel que exercia havia mais de um século. No entanto, apesar de os argumentos se assemelharem, parece que dessa vez a solução seria outra: no lugar da remodelação empreendida por Pereira Passos, meio século depois a questão assumia tons bem mais radicais. Talvez Brasília não fosse apenas mais uma ‘mentira carioca’ (MOTTA, 2001: 68).

Juscelino Kubitschek afirmava, em 2 de outubro de 1956, na primeira visita ao que seria a futura capital, que,

[...] parecendo um sonho, a construção de Brasília é uma obra realista. Brasília significa uma revolução política e uma revolução econômica. Estamos erguendo-a com aquele espírito de pioneiros antigos, dos homens que desbravaram os sertões modernos em nossas almas ansiosos por fundar uma civilização no coração do Brasil (VASCONCELOS, 1978, p. 354).

Ele estava certo. A revolução econômica era materializada no Plano de Metas do seu governo, uma vez que, a partir de sua implementação, segundo André Villela (2005: 50), “o setor agropecuário perde espaço para o setor industrial e, em 1960, tem peso de 17,8% no PIB (ou seja, um recuo de 5,7 p.p. em apenas cinco anos), contra 32,2% da indústria (25,6% da indústria de transformação)”. Cabe ressaltar, entretanto, que a população ainda era predominantemente agrária quando assume o poder, e que metade da população também era, ainda, analfabeta. Assim, o impacto dessa mudança na economia ainda era restrito, apesar de haver uma ruptura em direção ao desenvolvimento de uma economia industrial com grande participação de capital estrangeiro.

Esse capital estrangeiro fez-se presente na indústria de bens de consumo duráveis, em especial na indústria automobilística, o que exigiu novos hábitos da população e o direcionamento das políticas do Estado para consolidar o desenvolvimento industrial, como, por exemplo, no planejamento urbano voltado para o automóvel. A indústria automobilística foi, nesse período, a base do processo de industrialização e, se esse era o objetivo do país, dever-se-ia criar o consumo de seus produtos em larga escala. Não somente o automóvel alterou os hábitos das populações urbanas, mas também supermercados e produtos que, hoje, substituímos pelo nome da marca, como Modess, Pyrex e Gilette, revolucionaram o consumo no Brasil, cujos produtos atingiam, enfim, escala de produção nacional.

Simultaneamente, a década de 1950 é referência em movimentos que buscavam rupturas culturais e estéticas, e, sobretudo, políticas. À modernidade do Cinema Novo, contrapunha-se a chanchada da Atlântida e, em seguida, o cinema de Mazzaropi. Segundo Julierme Souza (2009),

[...] Partindo da premissa de que Paulo Emílio [Salles Gomes] é a matriz interpretativa da história do cinema brasileiro, bem como à luz dos apontamentos de Alcides Freire Ramos que implicam considerar que o crítico também é a matriz teórico-ideológica da desvalorização estético-política da chanchada, flagramos que além de autores como Jean-Claude Bernardet e João Luiz Vieira, outros como Ismail Xavier, Fernão Ramos e Maria Rita Eliezer Galvão também seguiram à risca a perspectiva interpretativa do argumento de Paulo Emílio segundo o qual as chanchadas ‘traziam, como seu público, a marca do mais cruel subdesenvolvimento’.

A modernidade estética rejeitava o popular tradicional, que se vinculava ao subdesenvolvimento do qual o país queria se livrar. O ideal, no cinema, era a vanguarda européia, e mesmo o popular passou, posteriormente, a substituir o rádio e o cinema pela novidade do período: a televisão. De qualquer maneira, além do cinema, a arte brasileira experimentou intensa atividade nas bienais de São Paulo, nas obras de Lygia Clarke, Hélio Oiticica, Lygia Pape e Manabu Mabe, na profissionalização do teatro e na Bossa Nova, esta símbolo e pináculo da modernidade carioca.

A revolução político-econômica mencionada por JK estava em marcha, e, para representá-la, não havia nada mais adequado que a transferência da capital, a fim de se forjar o brasileiro de um futuro que já havia se iniciado. Com esse objetivo, a modernidade brasileira consubstanciar-se-ia no projeto de Lúcio Costa para Brasília, exemplo mais bem acabado do urbanismo brasileiro, presente em todos os manuais sobre modernismo do mundo. Por essa razão, Brasília foi a meta-síntese do projeto modernizante firmado por Juscelino Kubitschek, e sua construção constituiu “uma das mais importantes experiências arquitetônicas e urbanísticas” (REIS FILHO, 2006: 97) do século XX.

É importante considerarmos os comentários acerca de Brasília. Embora a cidade não seja objeto deste trabalho, acreditamos não poder comentar sobre o desenvolvimento da Barra da Tijuca sem compreender a natureza de Brasília e de seu desenvolvimento posterior. Para o urbanista criador, Lúcio Costa (COSTA, 2001: 101),

[...] Brasília não é um gesto gratuito da vaidade pessoal ou política, à moda da Renascença, mas o coroamento de um esforço coletivo em vista ao desenvolvimento nacional – siderurgia, petróleo, barragens, auto-estradas, indústria automobilística, construção naval; corresponde assim à chave de uma abóbada e, pela singularidade da sua concepção urbanística e de sua expressão arquitetônica, testemunha a maturidade intelectual do povo que a concebeu, povo então empenhado na construção de um novo Brasil, voltado para o futuro e já senhor do seu destino.

O Plano-piloto de Brasília é bastante simples, já que

[...] nasceu do gesto primário de quem assinala um lugar ou dele toma posse: dois eixos cruzando-se em ângulo reto, ou seja, o próprio sinal da cruz. Procurou-se depois a adaptação à topografia local, ao escoamento natural das águas, à melhor orientação, arqueando-se um dos eixos a fim de contê-lo no triângulo eqüilátero que define a área urbanizada (BENEVOLO, 2004: 716).

 Hall (2005: 254) acrescenta:

[...] a planta era descrita das mais variadas formas, ora como avião, ora como pássaro, ora como libélula: o corpo, ou a fuselagem, era um eixo monumental destinado aos principais edifícios públicos e repartições administrativas; nas asas, ficavam as áreas residenciais e outras. No primeiro setor, blocos uniformes de escritórios deviam ladear um amplo passeio público que desembocava no complexo de edifícios governamentais. No segundo, uniformes prédios de apartamentos deviam ser construídos em superquadras corbusianas de frente para uma imensa espinha de tráfego; obedecendo à risca à prescrição de La ville radieuse, todos, do secretário permanente ao porteiro, deveriam morar nas mesmas quadras, ocupando o mesmo tipo de apartamento.

Segundo Geografia Ilustrada Brasil (1971: 512. vol. II), o eixo norte-sul tem “função circulatória, com pistas centrais de alta velocidade e outras laterais para atender ao tráfego local, distribuindo ao longo dele as áreas destinadas à habitação”. No eixo leste-oeste, “encontram-se os centros cívicos e administrativos, o setor cultural e de diversão, os centros esportivos, a administração municipal, os quartéis, as zonas destinadas à armazenagem, ao abastecimento e às pequenas indústrias” (loc. cit.). No entroncamento dos eixos, situa-se o terminal rodoviário.

Benevolo (2004: 718) itera as citações acima, afirmando que

[...] o eixo Norte-Sul é concebido como uma moderna rodovia e dirige o tráfego externo – isto é, a corrente de trocas com a região circundante, em função das quais nasce Brasília – para o coração da cidade; ao longo desse eixo estão dispostos todos os setores residenciais, enquanto que, nos cruzamentos do eixo com as vias de penetração, oportunamente dotados de plataformas em vários níveis, se encontram os setores recreativos.

Quanto ao eixo Leste-Oeste, lembra que este ordena

[...] as áreas de decisão e forma o eixo monumental do novo centro político; os primeiros edifícios – o Palácio do Governo, do Supremo Tribunal e do Congresso – estão reunidos em torno de uma praça triangular [o Congresso no vértice], a Praça dos Três Poderes enquanto a catedral está situada em local afastado para valorizar suas qualidades monumentais (BENEVOLO, 2004: 718).

Uma das características mais fortes de Brasília é a superquadra. Segundo Lúcio Costa, “o conceito de superquadras como extensão residencial aberta ao público, contraposição ao de ‘condomínio’ como área fechada e privativa, foi inovador e revelou-se válido e civilizado” (apud LAUANDE, 2007). Ademais, afirma que

[...] as quadras não devam ser loteadas, sugerindo, em vez de venda de lotes, a venda de quotas de terreno, cujo valor dependerá do setor em causa e do gabarito, a fim de não entravar o planejamento atual e possíveis remodelações futuras no delineamento interno das quadras. Entendo também que esse planejamento deveria de preferência anteceder a venda das quotas, mas nada impede que compradores de um número substancial de quotas submetam à aprovação da Companhia projeto próprio de urbanização de uma determinada quadra, e que, além de facilitar aos incorporadores a aquisição de quotas, a própria Companhia funcione, em grande parte, como incorporadora (BENEVOLO, op. cit.: loc. cit.).

Lucio Costa intentava, assim, preservar a forma urbana da nova capital da especulação imobiliária e da desorganização estética. Nestor Goulart Reis Filho (2006: 101) acrescenta que

[...] com essa nova forma de organização espacial, conseguiu-se superar a velha noção de lote urbano, como algo separado da construção. As vendas, nas superquadras, não foram de lotes, mas de espaços destinados à construção, de projeções de edifícios com altura pré-determinada, do direito de construção de uma determinada habitação.

Sophia Telles lembra que Lucio Costa obteve, com a superquadra, a solução para equilibrar as escalas cotidiana e monumental. Esta “‘foi conseguida graças à generosa largueza de espaço’, e a cotidiana, ‘a escala do Welfare’, resolvida com a criação das superquadras” (TELLES, 1989: 12).  Por sua vez, essas superquadras

[...] foram ‘imaginadas com o enquadramento verde [...] de modo que esses grandes quadrados, geometricamente definidos, entrariam em harmonia com a escala monumental’. [...] ‘As quadras seriam apenas niveladas e paisagisticamente definidas, com as respectivas cintas plantadas de grama e desde logo arborizadas, mas sem calçamento de qualquer espécie, nem meios-fios’ resguardando ‘o conteúdo das quadras, visto sempre num segundo plano e como que amortecido na paisagem’ (loc. cit.).



No projeto para Brasília, as superquadras

[...] compreendem 11 blocos de apartamentos distribuídos sobre uma quadra com superfície maior do que nos exemplos tradicionais. Sua disposição é de tal modo que todos os blocos tocam em algum ponto um sistema viário para automóveis e serviços e, ao mesmo tempo, ligam-se aos sistemas para pedestres, que levam aos parques, às áreas de recreação, aos demais blocos e ao comércio local, sem cruzamentos com o outro sistema (REIS FILHO, op. cit.: 100).

Essas superquadras têm influências das siedlungen alemães, do esquema Radburn e do parkway, do paradigma modernista de revolucionar a disposição do edifício no lote e da ruptura com a cidade tradicional consubstanciada no hibridismo da cidade-jardim, a qual tinha por objetivo expurgar a privatização do espaço urbano e criar um caráter comunitário para a sociabilidade, por meio de uma nova forma de morar. Machado (2007: 127) assevera que,

[...] segundo Roland Corbisier, Oscar Niemeyer dizia que Brasília deveria ser uma cidade socialista, comunitária. Cada superquadra seria concebida para ser uma unidade residencial, relativamente autônoma, com restaurante, supermercados, farmácias, lavanderias, escolas, creche e igrejas. Chama a atenção no texto que o intuito era proporcionar uma vida em comunidade que quebrasse o isolamento burguês das famílias. No entanto, ironicamente, é fácil perceber que assim como Brasília, as superquadras viraram certamente mais paradigmas de exclusão e privilégio de que propriamente de uma estrutura comunitária.

Entre as razões para que isso ocorresse, está o fato de ter havido

[...] um equívoco na venda indiscriminada dos terrenos correspondentes à projeção dos blocos a edificar, sem o cuidado de se preservarem, conforme o relatório do plano-piloto sugeria, as superquadras internas para a construção de apartamentos econômicos. Segundo sua avaliação [a de Lúcio Costa], o governo agravou a situação com a prática de cessão das áreas a apenas uma determinada categoria de moradores, criando em conseqüência, as quadras de bancários, de militares e de funcionários públicos (ibid.: 60).

Desse modo, “o Plano Piloto não foi obedecido ainda, como, por exemplo, nas superquadras. O que se queria era formar de quatro superquadras uma Unidade de Vizinhança, em que convivessem pelo menos três níveis sociais” (ibid.: 134). Para Benevolo (2004: 718), a principal deficiência do Plano-piloto de Brasília é conferir

[...] a todo o organismo uma simetria bilateral que lhe dá um vago sabor zoomórfico, provavelmente desejado por razões simbólicas [, introduzindo] [...] na estrutura da cidade um fator extrínseco, uma metáfora que perturba sua adequação à realidade.

Tanto Benevolo quanto Hall criticam o crescimento da periferia urbana brasiliense sem qualquer planejamento; este autor indica que a “verdadeira falha, exatamente como em Chandigar, foi ver-se crescer, ao lado da cidade planejada, outra, não planejada. Só que aqui [em Brasília] ela era bem maior” (HALL, 2005: 255). Assim, prossegue Hall (ibid.: 257),

[...] se acabou o sonho da construção de uma sociedade urbana sem classes num país onde ricos e pobres sempre estiveram segregados. A diferença, se é que existe, é que em Brasília estes ficaram mais implacavelmente isolados do que em qualquer das cidades anteriores: colocou-se um cordon sanitaire entre eles e a cidade monumental, simbólica, de maneira que nunca pudessem estragar-lhe a vista ou perturbar-lhe a imagem. O próprio Niemeyer já dizia, na ocasião, que o plano fora distorcido e desvirtuado; só um regime socialista, sentia, poderia tê-lo implementado.

Nosso Século e Yi-Fu Tuan rememoram as críticas a Lúcio Costa, e, obviamente, ao presidente Juscelino Kubitschek sobre a ausência de um estudo minucioso que contemplasse, por exemplo, os custos da construção e o desenvolvimento prévio de meios de comunicação. Este autor lembra, também, que de acordo com o urbanista, “a capital artificial não é um organismo que cresce lentamente do chão, mas um mundo completamente concebido para ser colocado no terreno” (TUAN, 1980: 197). Assim, “fundar uma cidade ‘é um ato deliberado de possessão, um gesto na tradição colonial dos pioneiros, a domesticação do selvagem’” (loc. cit.).

Tuan prossegue, asseverando que

[...] Brasília é um pássaro que pousou na terra, uma nova Jerusalém descendo do céu de Deus. Na psicologia de Jung, o pássaro é também um símbolo de salvação, um sinal de espiritualização. Da potencialidade verde do interior selvagem do Brasil o espírito do homem se eleva para o céu (ibid.: 198).

O mais interessante para nosso trabalho, a ser trabalhado com mais rigor, posteriormente, é que Yi-Fu Tuan afirma que o plano de Brasília remete

[...] à tradição dos primeiros colonizadores portugueses que levantaram uma cruz para selar a sua posse da descoberta de um novo país: Cristo, o Kosmokrator venceu o caos. Por outro lado, lembra a antiga e sagrada tradição de dividir a terra por duas linhas que se cruzam apontando para as direções cardeais (ibid.: 197-8).

Antes de comentar sobre o asserto de Tuan, devemos citar a tese de Sílvio Lúcio Franco Nassaro. O autor, ao discorrer acerca da disputa política entre a ambição de proprietários de terras, dos quais alguns se tornarão reis, e o poder secular da Igreja, demonstra como se construiu o discurso, de base agostiniana, da primazia do poder eclesiático sobre o poder temporal. Este, de acordo com Egídio Romano,

[...] além de se fundamentar em Deus, é constantemente constituído e sustentado, à maneira de emanações, pelo poder espiritual, pois não só todo poder vem de Deus, mas procede ordenadamente de Deus. Assim, alcança-se mais um desdobramento na visão metafísica do poder político – pela qual Deus institui a Igreja e esta o poder civil – pois há ainda uma ordem de poderes em processo, garantida e continuamente atualizada, pela própria ordem do universo estabelecida por Deus (NASSARO, 2010: 282-3).

Esse pressuposto é imagético – pinturas medievais costumam retratar

[...] reis e imperadores ajoelhados para receber a coroa e o protetorado de uma autoridade eclesiástica, bem como nobres em diferentes posições, gestos e expressões faciais de submissão; ressalte-se que estas pinturas foram caras encomendas feitas pelos próprios representados (ibid.: 282).

Aqueles artistas a serviço da Igreja, por sua vez,

[...] buscando traduzir em imagem o conceito político totalizante, [...] optam pelo emprego de códigos visuais que correspondem ao discurso que domina o centro de consenso de sua época e, assim, retratam em geral um ‘rei ou imperador de tudo o que há ou pode existir’, que dá origem já na alta Idade Média ocidental e bizantina a um específico gênero de representação de Cristo sob o título de Pantokrator ou Kosmokrator, i.e., ‘todo-poderoso’ mostrando a divindade com expressão altiva, dominadora, coberta de atributos reais, tais como coroa, cetro, manto púrpura, jóias, comitiva, etc. E, em alguns casos engenhosamente bem sucedidos, segurando em uma das mãos um orbe azul que serve de base para uma pequena cruz, como Atenas, aliás, armada para a guerra, era retratada segurando uma minúscula imagem da deusa Nike, a deusa grega da vitória (ibid.: 283).

Nesse caso, Cristo e Atená estão bastante próximos, da mesma maneira que em Brasília, a qual, segundo Lucio Costa,

[...] teve de nascer como Minerva, já pronta. É o produto de uma conjuntura especialíssima e assim deve ser vista e julgada. Em condições normais ela é o exemplo de como não se deve fazer uma cidade. Contudo, não é uma utopia. É, tão somente, a capital do País, com sua inatualidade social e suas mazelas transferidas a mil quilômetros da praia e mil metros acima do mar. Mas foi concebida e construída com decisão e com fé num Brasil diferente e num mundo melhor – a sua arquitetura e o seu urbanismo exprimem essa confiança – e isto, no final das contas, é o que importa (MACHADO, 2007: 133).

Há a necessidade de mais pesquisas sobre a identidade entre o Cristo kosmokrator e o Cristo que ascendeu aos céus. Se houver, não há distinção entre o projeto de Costa para o Plano-piloto e a arquitetura consubstanciada na forma da Catedral de Niemeyer. Entretanto, se não houver identidade entre ambas, como acreditamos, há incongruência na análise de Tuan, porque este assegura que

[...] se esta interpretação do plano da cidade parece forçada, podemos observar a catedral de Niemeyer – um símbolo mais explícito de transcendência. [...] Para nela entrar, o devoto precisa primeiro atravessar o interior da terra e passar, simbolicamente, através do ‘vale sombrio da morte’. Dentro, ele é subitamente iluminado de fora: seus olhos são conduzidos pela ondulação para a fonte de luz e de bendição (TUAN, 1980: 198).

O espírito do homem ascende ao céu na experiência de Brasília, bem distinta da mundaneidade carioca. O devoto que entra na igreja projetada por Niemeyer reproduz, ele próprio, a mesma trajetória do Cristo – que morre, ressuscita, ascende –, que, não por acaso, jaz sobre o Rio de Janeiro.

Confira: Imagem de Brasília à noite



[1] texto adaptado.

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